segunda-feira, 11 de julho de 2016

A importância da Perpetuação da Memória Coletiva: O uso da Epigrafia nos monumentos e documentos egípcios, com o intuito de eternizar acontecimentos memoráveis de sua História Amanda Martins Hutflesz


A importância da Perpetuação da Memória Coletiva: O uso da Epigrafia nos monumentos e documentos egípcios, com o intuito de eternizar acontecimentos memoráveis de sua História


Amanda Martins Hutflesz


Resumo: A pergunta que instigou a realização desta reflexão surgiu com o objetivo de analisar brevemente o uso da epigrafia nos monumentos egípcios, como forma de celebração para algum acontecimento importante para a sociedade da época, visando uma perpetuação da memória coletiva, seja ela de um povo, de uma nação, uma geração. As memórias das diversas vitórias, mas também das guerras, das lutas históricas, que em geral, faziam parte intrínseca da vida dos nobres, dos reis do local, estes, que pretendiam deixar escrito nas Estelas funerárias e obeliscos, e até mesmo em pirâmides e sarcófagos, suas representações figuradas. O que mais adiante, se passou a entender como um documento, uma narrativa (isto já após a invenção da escrita) dos fatos em alguma rocha, pedra, madeira, papel; enfim, um arquivo eternizado no tempo. E assim, a inscrição do ocorrido, imortalizaria seus feitos, relembrando a outras gerações, fatos importantes do passado de um povo, de uma civilização. Estariam então, conservada uma memória e uma lembrança de algo, as pessoas que viveram em outra época e realizaram um quê de grandioso, ou até mesmo, de malévolo, e que, atualmente, não se tem mais o costume de fazer. Algum hábito que já não existe, alguma tradição que não se utiliza mais. Enfim, se faz fundamental compreender esta transformação, que o uso da epigrafia proporcionou para a Antiguidade, e que influenciou a todos as gerações seguintes, se estendeu para a vida social de um determinado período histórico mais antigo, e, hoje, não se poderia viver sem fazer uso do processo de escrita, da epigrafia mais em específico.
                                                                                                            
Palavras-chave: História, Memória Coletiva, Monumentos, Documentos, Egípcios, Epigrafia, Celebração, Comemoração, Obeliscos, Vitórias, Imortalizar, Eternizar.


The importance of the perpetuation of Collective Memory: The use of epigraphy monuments and Egyptian documents, in order to immortalize memorable events of their history”
              
Abstract:

 The question that prompted the realization of this reflection was meant to briefly analyze the use of epigraphy in Egyptian monuments, as a form of celebration for some important event for the society of the time, aimed at perpetuating the collective memory, be it a people, a nation, a generation. The memories of several victories, but also wars, historical struggles, which in general were an intrinsic part of the lives of noblemen, the site of kings, these, who wanted to leave written on the funeral and obelisks stele, and even pyramids and sarcophagi, their figurative representations. What farther, he came to understand how a document, a narrative (already after the invention of writing) of the facts in any rock, stone, wood, paper; that is, a file eternalized in time. Thus, the description of what happened; immortalize his deeds, remembering the other generations, important facts from the past of a people, of a civilization. Were then preserved a memory and a memory of something, the people who lived in another time and made a note of great, or even of evil, and that currently there is no longer the custom to do. A habit that no longer exists, a tradition that is not used more. Finally, it is essential to understand this transformation, the use of epigraphy provided to ancient times, and that influenced all subsequent generations, extended to the social life of a given oldest historical period, and today no one would live without making use of the writing process, the epigraphy more specific.
 
Keywords: History, Collective Memory, Monuments, Documents, Egyptians, epigraphy, Celebration, Celebration, Obelisks, Win, Immortalize, immortalize.


1.      Memória e História

Pretendo iniciar este trabalho, colocando em evidência, um trecho de suma importância, que nos fala amplamente sobre o conceito de memória extraído da obra de Jacques Le Goff (1989, p. 419), que explicita que:

Definição de Memória: Fenômeno individual e psicológico, a memória liga-se também à vida social. Esta varia em função da presença ou da ausência da escrita e é objeto da atenção do Estado que, para conservar os traços de qualquer acontecimento do passado, produz diversos tipos de documento/monumento, faz escrever a história, acumular objetos. A apreensão da memória depende deste modo do ambiente social e político. Trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagens e textos que falam do passado, em suma, de certo modo de apropriação do tempo. As direções da memória estão, pois profundamente interligadas as novas regras de cálculo, de manipulação da informação, do uso de máquinas e instrumentos cada vez mais complexos.

            Desta forma, levando tal conceituação mais à frente, e buscando por meio de outras pesquisas também referentes ao assunto Memória, o qual está intrinsecamente ligado à vida social de uma nação que faz uso ou não da escrita, e que procura manter intacta para mostrar a outras gerações futuras, certo tipo de cultura, em geral pertencente aos povos da Antiguidade. Portanto, tende a elaborar documentos e construir monumentos escrevendo nestes, certas passagens marcantes de sua história. Seja ela uma história econômica, cultural, política ou do próprio indivíduo. É preciso lembrar ainda, o papel da imagem para história, o que podemos chamar de memória visual bastante usado pelos povos do passado.

1.2. A Memória e o Egito Antigo

            Neste principiar de um artigo, é relevante dizer que, na história de uma nação, de uma geração em específico, haverá uma grande interdisciplinaridade ao se falar de Memória, mas em outra perspectiva, muitas são as especificidades inerentes a este estudo, as nações e suas diversas organizações sociais, religiosas, econômicas, suas crenças e hábitos. Tentaremos elucidar alguns aspectos a seguir, sobre o tema proposto para elaboração deste projeto, desejando analisar alguns aspectos relevantes da antiga civilização egípcia.


Sendo assim, através do trecho acima, conseguimos perceber a construção da memória imortal para o povo do Egito. Para ser eterna, a pessoa tinha que ter seu nome gravado em algum lugar fixo, imutável, estável, eterno. Somente viveria através deste nome marcado em pedras ou papiros, livros, monumentos em geral. Sua integridade estava ligada a perpetuação de seu nome no tempo. Ter este nome apagado era, para os egípcios, a mesma situação de morrer e deixar de existir no mundo. A pessoa sem o nome era um corpo sem vida, sem alma. Um nome sempre lembrado significava a eternidade do morto, ainda que fosse só na lembrança de alguém.
           
Para os antigos egípcios, o valor da perpetuação de uma memória pode consistir por vezes em que “Admitamos que a história nacional seja um resumo fiel dos acontecimentos mais importantes que modificaram a vida de uma nação, que se distingue das histórias locais, provinciais, urbanas pelo fato de reter apenas os fatos que interessam ao conjunto de cidadãos – ou melhor, dos cidadãos, enquanto membros da nação.”

2. A Memória e a Escrita
     
Aqui, busquei trazer a opinião de alguns estudiosos a respeito do assunto abordado no tema do artigo, para que desta forma, possa enriquecer o conteúdo do mesmo. Todas as contribuições teóricas que serão mencionadas no decorrer da obra são fundamentais para levar ao leitor, uma visão mais ampla e rica sobre o conceito de memória tratando-se de Egito Antigo. Pois, para os egípcios, havia a importância da manutenção da memória coletiva, construída por meio de documentos e monumentos, e já baseada no uso devido da escrita pelos povos da Antiguidade.

E assim, sobre o Egito Antigo e do pai da escrita para os egípcios, o Deus Thot, vale a pena ver o que a autora Márcia Raquel de Brito (SARAIVA, 2004: p. 4) tem a nos dizer referente ao assunto:
O relato acima atenta para a importância quanto ao entendimento da natureza de Thot e do poder da escrita. Thot teria sido gerado em um deus invejoso e vingativo, mas também seria filho do deus sol, o mais importante de todos. A partir daí entendia-se porque a escrita, invenção extraordinária, diz a autora, tanto para o bem quanto para o mal de seus criadores.

            A riqueza das representações figuradas dentro dos povos do Oriente Antigo, por exemplo, nos faz imaginar que, igualmente era a sua riqueza cultural. Assim, mencionando então aspectos inerentes às construções, aos monumentos, onde a elite do local procurava uma maneira para imortalizar eventos, e onde esta mesma elite obtinha êxitos militares, vitórias em batalhas e a tão almejada derrota de todos seus adversários e dos invasores do seu país. Enfim, após a invenção da escrita, esses reis construíram um legado eterno em rocha, em pedras, que sempre viveria na memória de todos aqueles que pudessem ler as inscrições deixadas no monumento e soubessem o motivo de tal construção e inscrição. Essa glória foi perpetuada através do monumento, que levava consigo a função de documento histórico. A construção era mais a de uma memória social que servia para celebrar algum acontecimento importante para a nação. Um fato que marcou uma época vista pela geração deste período em específico, e pela geração do futuro. Porém, vejamos as palavras de Le Goff (1989):

História que fermenta a partir do estudo dos “lugares” da memória coletiva. “Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações: Estes memoriais têm sua história.


3. O uso da epigrafia nos monumentos egípcios

Os obeliscos, as pirâmides, os sarcófagos, as estelas funerárias, as imagens dos seus deuses do Antigo Egito, seus papiros, tumbas e múmias, constantemente por meio da mídia, livros, filmes, museus, estão sempre, nos impactando.



Toda a beleza e o esplendor vistos até os dias atuais, sobre uma memória egípcia ancestral de um passado que acabou ficando para trás, porém, até hoje a salvo nas rochas do próprio Egito.

E, como esquecer a história que foi feita para durar para sempre? Não podemos esquecê-la jamais, de forma alguma. Pois, em jornais, revistas, bibliotecas, canais de televisão, internet estamos sempre relembrando o passado desta civilização eternizada na memória coletiva da humanidade.

 Toda uma glória construída em pedra com o propósito de se tornar imortal. E aqui estamos nós, no Ocidente, no século XXI, escrevendo sobre esse passado, sempre vívido em nossa mente, e na mente de todos aqueles que amam a História do Egito.  

Através do uso da epigrafia, podemos perceber muitas formas de se construir e perpetuar a memória nos monumentos e nas construções. Construir um lugar na lembrança das pessoas, uma História que se eterniza para alcançar seu espaço, em meio à geração contemporânea através de imagens, livros que narram as tradições, os costumes, os hábitos, as guerras, os cemitérios, as lápides funerárias, as datas comemorativas, o calendário religioso, os registros em pedra, ou em papel sobre determinada civilização em específico. Muitos são os lugares onde esta memória pode ser preservada para o povo. E, assim está escrito na obra de Le Goff (1989):

No Oriente Antigo, por exemplo, as inscrições comemorativas deram lugar à multiplicação de monumentos como as estelas e os obeliscos. Na Mesopotâmia, predominaram as estelas, nas quais os reis quiseram imortalizar os seus feitos através representações figuradas, acompanhadas de uma inscrição […] em que o rei [...] fez conservar, através de imagens e de inscrições, as lembranças de uma vitória. [...] na época assíria, a estela tomou a forma de obelisco [...]. A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é a comemoração, a celebração através de um monumento comemorativo de um acontecimento memorável. A memória assume então, a forma de inscrição e suscitou na época uma ciência auxiliar da história, a epigrafia. Certamente que o mundo das inscrições é muito diverso.
                                                                  

           

O autor vai tratar neste trecho, do Egito em particular, e vai nos falar dos reis e seus feitos imortalizados em pedra, dos documentos que foram elaborados nos próprios monumentos, da importância do uso da escrita para este povo, para que pudessem com isto, perpetuar na lembrança de outras pessoas que existiriam mais à frente, momentos importantes de sua história.


No Egito, as Estelas desempenharam múltiplas funções de perpetuação de uma memória: Estelas funerárias comemorando, como em Abidos, uma peregrinação a um túmulo familiar; narrando a vida do morto, como a de Amenenhet sob Tutmosi III; Estelas reais comemorando vitórias como a de Israel sob Mineptah (cerca de 1230), único documento egípcio que menciona Israel, provavelmente no momento do êxodo; Estelas jurídicas, como a de Karnak (recorde-se que a mais célebre destas Estelas jurídicas da Antiguidade é a de Hammurabi, rei da primeira dinastia da Babilônia, entre 1792 e 1750 a.C., que nela fez inscrever o seu código, conservada no Museu do Louvre, em Paris); Estelas sacerdotais, nas quais os sacerdotes faziam inscrever os seus privilégios. (LE GOFF, 1989)



3.1. O uso da epigrafia em obeliscos egípcios


A autora (Apud BAKOS. 2005: p. 271-281) colabora neste artigo, com sua percepção a respeito dos obeliscos, mas também, a sua utilidade para os egípcios neste período histórico, buscando imortalizar sua história, escrevendo os acontecimentos no monumento para manter viva sua importância mediante o futuro, apesar da passagem do tempo.
                                                                                                        
Assim, apoiados nesta leitura, pensamos que o obelisco transmite, na sua reutilização por uma grande duração através da história, um sentido compreendido para aquilo que escreve apenas. Ele encerra o caráter de preservação da memória de poder sobre a existência de perpetuação. Pois, sabemos que a escrita hieroglífica desapareceu após a invasão dos gregos, e também, a sua existência mítica (BAKOS, 2005).


            Porém, não apenas utilizaremos o conceito mencionado acima, pois aqui está a autora Margaret Marchiori (Apud BAKOS, 2001: p.102-105) a qual, nos falará sobre a importância do obelisco e, também, do ato da escrita em sua obra:




A partir disto, consideramos a importância do obelisco na Antiguidade egípcia: o objeto – imagem – foi o primeiro suporte da escrita [...], aquela que perpetuava algo ou alguém e que servia pra o bem e para o mal. Apagar os escritos de um obelisco era apagar eternamente a memória daquele que o construiu. A integridade de uma pessoa dependia de sua perpetuação através da escrita. O apagamento de sua memória inviabilizava a imortalidade dos falecidos. O ato de escrever, para os antigos egípcios, significava muito mais que registrar um nome, coisa ou pessoa: Significava criá-los. A habilidade de escrever era atribuída aos ensinamentos do Deus Thot. Os escribas, aqueles que praticavam a escrita, eram considerados possuidores de atributos divinos.


Margaret Marchiori escreve que “[...] podemos entender a utilização dos monumentos nos casos apresentados como um perpetuador de uma identidade antiga, representativa de ideais de igualdade, liberdade e busca de uma forma de poder na totalidade [...] O contexto que envolve o fato é importante para a compreensão do relato do mesmo [...] “No obelisco, a escrita deveria contar a vida e as glórias do governante responsável por sua construção. “Deste modo, a escrita tornava-o imortal, pois para sempre seu nome estaria naquela pedra”. E, que “Originalmente, um obelisco tinha a escrita hieroglífica esculpida [...] em pedra. A leitura deveria ser feita na vertical”.

A autora acredita ainda na “[...] apropriação, por outras culturas, de elementos do Antigo Egito” e pelo que se pode perceber com o trecho em destaque, fala sobre os romanos e os gregos, que foram consistentemente influenciados pela cultura egípcia, mas também sofreram tal influência, e dentro do período em questão, pois deixaram para a posteridade, uma memória funerária que atesta esta apropriação cultural, e que a civilização helênica, buscou mostrar sobre si mesma, para as sociedades contemporâneas. Assim diz que “Memória funerária, enfim, como o testemunham, entre outras, as estelas gregas e os sarcófagos romanos; memória que desempenhou um papel central na evolução do retrato”.


Mas a época áurea das inscrições foi a da Grécia e a da Roma antiga, [...] as inscrições acumulavam-se e obrigavam o mundo greco-romano para um esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da lembrança. A pedra e o mármore serviam, na maioria das vezes, de suporte a uma sobrecarga de memória. Os “arquivos de pedra” acrescentavam à função de arquivos propriamente ditos um caráter de publicidade insistente, apostando (BAKOS, 2001).


Sobre monumento, compreendemos então, um pouco mais sobre a atitude dos egípcios em constantemente empreender grandes construções, visando demonstrar para as civilizações futuras, que eles, os egípcios, em geral, a elite egípcia, os reis, que imaginavam ter em seu poder a vitória contra a passagem dos anos, obtendo-a também através dos seus monumentos das narrativas neles contidas, sempre com um caráter de imortalidade e permanência. “Memória real, pois os reis fazem compor, e, por vezes, gravar na pedra anais [...] em que estão, sobretudo narrados os seus feitos – que nos levam à fronteira onde a memória se torna “história” (LE GOFF, 1989).

Em toda a atmosfera dos textos que falam de Egito Antigo, temos constantemente a sensação de que os personagens que habitam esta civilização, ainda nos observam, e falam conosco por meio de relatos extraídos das obras pertencentes aos períodos de maior destaque, tal como os períodos faraônicos do Egito. A imagem dos obeliscos nos fala, através dos escritos em hieróglifos, infelizmente, para muitos de nós, de difícil compreensão. Mas, a fala chega por outras vias, tais como as estelas funerárias, o livro dos mortos, monumentos que levaram alguma inscrição, dizendo a razão de sua construção, e em geral, quem foi à figura política que o mandou erguer; os museus que guardam toda esta memória da Antiguidade, as roupas, os acessórios, os instrumentos musicais, tudo se comunica e liga o passado ao presente. Todos estes artefatos trazem em si, a imagem de outro tempo. Pois, também não deixam de ser um documento estes objetos, ou um monumento que mostra como vivia aquela sociedade.


Neste tipo de documento, a escrita tem duas funções principais:


Uma é o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro; a outra, ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual, permite “reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas (LE GOFF, 1989).
           

           
3.2. O uso da epigrafia e o imaginário social no Antigo Egito


            Quando não havia escrita, tudo era transmitido via oral, feita assim, uma memorização dos rituais, uma constante preocupação em não deixar de cumprir com as mesmas práticas, ano após ano, imortalizando os cultos da vida religiosa. Através da visão do autor Bronislaw Baczko (Apud BACZKO, 1986, p. 5), sobre imaginário social, percebe-se melhor que:

O imaginário social sendo um sistema simbólico produzido pela coletividade que se observa, conforme os objetivos a que essa sociedade se impuser visualizada para uma nova forma de relacionamento entre os agentes e instituições sociais. O imaginário social elabora [...] a identidade de uma sociedade [...] e que regula a coletividade. Sendo o imaginário uma ferramenta do controle da vida coletiva [...].


E, penso ser possível compreender a memória coletiva, pelo viés do imaginário religioso social egípcio, suas concepções de mundo, sua cultura bastante significativa, pois não podemos negar seu caráter de longevidade, sendo que, durante mais de 3.000 anos suas tradições ultrapassaram o espaço e o tempo, influenciando a muitas outras gerações.

Esta civilização não sabia o significado da palavra sucumbir, deixar de existir, morrer, ser esquecido. Investiram todos seus recursos para alcançar sua tão almejada vida eterna. Uma lembrança eterna, uma memória imortal. E, por meio de Le Goff, (1989) entendemos que “A soma dos fatos que devem ultrapassar as gerações imediatamente seguintes” limita-se à religião, à história e à geografia [“...]”.
                       

Poderíamos compreender estas tradições religiosas egípcias a respeito do seu conceito de imortalidade, respeitando o recorte cronológico em questão, como a representação de uma memória religiosa coletiva, que atuou influenciando as tradições religiosas dos povos que lhe foram contemporâneos e posteriores. Assim, é possível ter sobre o assunto, um olhar de perpetuação desta memória social, religiosa, nacional, no que diz respeito aos egípcios. A autora (Apud BAKOS. 2005: p. 271-281) colabora com sua visão a respeito dos obeliscos e sua utilidade para este povo, neste período histórico, buscando imortalizar sua história, escrevendo os acontecimentos no monumento para manter viva sua importância mediante o futuro, apesar da passagem do tempo.
É provável que muitos destes aspectos da cultura egípcia, encantem a maior parte dos estudiosos em Egito Antigo. Principalmente o aspecto ligado ao imaginário social, o qual trata da religiosidade e todos seus rituais, suas tradições, passadas a diante de geração para geração, o conceito que é constantemente divulgado sobre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos como um reflexo do outro, a hierarquia egípcia, sua elite que vivia em meio ao luxo e a riqueza, sua consciência de uma moral ética, seus medos, suas paixões, sua arte. E, em pensar que, atualmente, tudo é de nosso conhecimento, pois ficou gravado na pedra, ou no papel.
                                                                                                        

4.      A Literatura Funerária no Egito

            O estudo acerca da memória perpetuada pelos rituais funerários da religião no Antigo Egito é algo bastante amplo, e poderá ser sempre auxiliado pelas informações contidas no Livro dos Mortos, o qual data da XVIII Dinastia, e sua relação com os processos da mumificação, com os deuses da morte, seus cultos, oferendas e o papel dos sacerdotes no ritual. Onde tudo era pensado com o propósito de permitir que o morto, encontrasse com segurança, um caminho para a vida após a morte, sendo necessária a preservação do seu corpo, eternizando sua alma, sua lembrança, para o momento no qual, a alma voltaria a habitá-lo. 

A literatura funerária talvez seja um dos mais fascinantes aspectos do qual podemos tratar neste artigo. Este imaginário místico e exótico sobre vida após a morte, vida eterna, uma maneira singular de tratar o morto através da prática da embalsamação, as preces e fórmulas mágico-rituais empregadas pelos sacerdotes visando auxiliar o morto em sua chegada no outro mundo, com direito ao julgamento da alma dentro de um tribunal específico, os diversos deuses cultuados por um povo que vivia em meio ao politeísmo.
                                                                                                                                       
De acordo a tradutora da obra Edith Negraes (1982): “[...] uma conseqüência natural do culto aos mortos, seria oferecer a eles, para sua vida eterna, tudo de que necessitariam, já que onde viveriam – nas tumbas – não encontraria meios de sobreviver”.

É preciso focar tal cultura, tendo atenção naquilo que está nas entrelinhas de suas práticas e rituais. Pois, este povo estava visando sempre, uma perpetuação de sua alma e de seu corpo, o qual sendo conservado alcançava também, a imortalidade. Uma permanência da sua lembrança, da sua memória e, de tudo o que representou sua sociedade no passado, nos primórdios, ultrapassar o tempo, ser imutável na lembrança do mundo contemporâneo.

A tradição é biologicamente tão indispensável à espécie humana como o condicionamento genético o é às sociedades de insetos: a sobrevivência étnica funda-se na rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital necessário à sobrevivência do grupo, o progresso, a intervenção das inovações individuais para uma sobrevivência melhorada. A autora (Apud BAKOS, 2005: p. 271-281) colabora com sua visão a respeito dos obeliscos e sua utilidade para este povo, neste período histórico, buscando imortalizar sua história, escrevendo os acontecimentos no monumento para manter viva sua importância mediante o futuro, apesar da passagem do tempo.
           
Assim, apoiados nesta leitura, pensamos que o obelisco transmite, na sua reutilização por uma grande duração através da história, um sentido compreendido para aquilo que escreve apenas. Ele encerra o caráter de preservação da memória de poder sobre a existência de perpetuação. Pois, sabemos que a escrita hieroglífica desapareceu após a invasão dos gregos, e também, a sua existência mítica (BAKOS, 2005).



Diversos ritos eram realizados antes do sepultamento, dentre eles a cerimônia de abertura da boca do morto, que era feito com um instrumento metálico.  Enxó de UPUAUT “aquele que abre os caminhos” (do morto). A abertura da boca servia para a múmia recuperar os sentidos e digerir o alimento necessário na viagem para o além ou para a fonte original de vida. Havia o tribunal de Osíris, e este tribunal do juízo final era presidido pelo mesmo deus, e ocorria na sala das duas verdades, onde o deus Anúbis pesava o coração do morto para constatar os pecados cometidos em vida. Assim, quando o coração do morto era mais leve que a pluma da verdade (Maat), seu dono viveria para sempre. Caso contrário, o coração era jogado para o monstro Amit “o devorador dos mortos”. Osíris está acompanhado pelas irmãs, Ísis (esposa) e Néftis.

            Nomes eternos, estátuas eternas, caixões eternos, papiros, amuletos, roupas, monumentos, imagens, colossos, pirâmides. Os egípcios estavam sempre “seguros de que a vida não acabava na terra”, e, contudo isto, “No Egito Antigo, a alma era imortal e de natureza divina, pois mesmo depois de separada do corpo continuava a vive, viajando para a eternidade. [...] o morto precisava para sua viagem, de uma boa dose de conhecimentos mágicos [...]” (NEGRAES, 1982).

Quando mencionamos os povos antigos e sua beleza, riqueza cultural, desenvolvimento, uma das principais grandes civilizações que nos vêm à memória, inevitavelmente é o Antigo Egito. Suas variadas tradições e concepções sobre a construção de uma memória eterna, seus escritos feitos para a posteridade, seus monumentos erguidos com um intuito de perpetuar a lembrança de tudo o que foi esta civilização. O caráter de imortal, de permanência, de renovação, de grandiosidade, de durabilidade é constantemente percebido nos seus documentos e nos seus monumentos.

A partir deste recorte feito na obra de Le Goff, (1989) é mais fácil perceber o objetivo da perpetuação da memória para os Antigos egípcios. Momentos de guerra e de vitórias envolvendo a realeza da época precisavam ser imortalizados de alguma forma, e servindo de lembrança para os povos da posterioridade. “A especificidade do monumento [...], Tem, portanto, a finalidade de manter ou preservar também a identidade mágica, religiosa, nacional, tribal ou familiar de um grupo”. O autor ressalta que, “A outra forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita […] Mas, importa salientar que [...] todo documento tem em si, um caráter de monumento e não existe memória coletiva bruta.

Explicando melhor o Deus da escrita dos antigos egípcios, Thot, Le Goff (1989: p. 433) diz que: “[...] a lenda do Deus egípcio Thot, patrono dos escribas e dos funcionários letrados, inventor dos números, do cálculo, da geometria a da astronomia, do jogo de dados e do alfabeto.”

Em geral, para os reis do período faraônico, a estabilidade do reinado dependia de certas tradições religiosas e militares caminharem juntas. Cultuando sempre seus deuses, e vivendo através do ideário que dizia aos reis que, para que eles tivessem sucesso na vida em geral, era sempre necessário manter um equilíbrio da ordem cósmica, buscando agir na terra de forma ética para seu povo, usando de justiça, equilíbrio, ordem e verdade, priorizando em seu cotidiano, obter êxitos na parte social, política, cultural econômica, pessoal, religiosa. 

Era preciso assim, escrever tudo, registrar em documentos, calcular, gravar tudo em rochas, papiros, livros, principalmente os seus nomes. Sua crença na eternidade dos nomes de poder era ampla.

Neste tipo de documento, a escrita tem duas funções principais: “Uma é o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro; a outra, ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual, e permite reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas.” (GOODY, 1977)


O autor J. Goody (Apud GOODY, 1977: p. 78), escreve em seu livro que: “A comunicação da informação, que ultrapassa espaço e tempo, o que em conformidade foi sempre utilizado no imaginário cultural dos antigos egípcios.”
           

Nomes estes, ficando esculpidos em pedras, deixando transparecer, através das imagens desenhadas nos monumentos, o quanto eram nobres, bons, justos, fortes, imortais.
                                  
Uma lembrança sempre durável, de algum fato que foi marcante para a realeza, e também para a civilização, e que estava relacionado ao poder do homem/rei/faraó para se eternizar mediante à futuras gerações. Mostrando nas imagens das guerras, das batalhas, das comemorações, dos ritos funerários, das colheitas, das festas, como era possível se viver para sempre. Ser eterno, imortal, perpétuo, ultrapassando tempo e espaço, era, para a maioria deste povo, algo fundamental.

E, eles conseguiram nos deixar claramente esta memória, pois preservaram suas vidas até hoje, seus nomes, seus hábitos, seu modus vivendi, em monumentos e documentos. Em seu artigo, Regina Martins de Souza (HEINS, 2001: p. 1-2) nos explica que:

            [...] no período que chamamos reino médio – 2040 a 1640 a.C., a literatura funerária principiou a ser uma idéia socialmente difundida, pois manifestava a visão de mundo egípcia na época, e que também, acabavam por dar sustentação às crenças nos encantamentos e na existência real e concreta de uma vida após a morte.

Em uma posterior análise deste recorte extraído da obra deste autor (Apud DAUMAS, 1965: p. 579), compreendemos, da mesma forma que:
           
Mais tarde os soberanos fazem redigir pelos seus escribas relatos mais detalhados dos seus reinados dos quais emergem vitórias militares, benefícios da sua justiça e progressos do direito, os três domínios dignos de fornecer exemplos memoráveis aos homens do futuro. No Egito, parece, desde a invenção da escrita (um pouco antes do início do III milênio) até o fim da realeza indígena na época romana, anais reais foram redigidos continuamente. Mas o exemplar único, conservado em frágil papiro desapareceu. Só nos restam alguns extratos gravados na pedra.


No Livro dos Mortos do Antigo Egito, percebemos melhor as crenças religiosas dos Antigos Egípcios. Eles nos mostram que, para eles, o corpo era uma manifestação da alma, e ambas deveriam sempre estar ligadas, mesmo no outro mundo. Sendo assim, muitas eram as técnicas de embalsamação acompanhadas das práticas religiosas, as quais desenvolvidas para obter êxito no momento do ritual funerário, indicando para a alma do morto, o caminho mais rápido para sua transfiguração no além. Inclusive, tais técnicas foram também sendo cada vez mais refinadas com o passar dos séculos, conforme a exigência dos faraós e sacerdotes.

Os textos dos sarcófagos são exemplos nítidos de uma memória que chegou até a atualidade. Todos os escritos neles contidos visam difundir alguma idéia acerca da passagem do morto para a outra vida. Representam fórmulas mágicas que, junto com todo o ritual funerário, possibilitava ao defunto, sobreviver no mundo subterrâneo, para posteriormente, encontrar o caminho da luz.

            Entendo o próprio Livro dos Mortos como uma construção da memória funerária desta civilização, feita para a eternidade. E o Livro, foi um lugar onde esta memória se perpetuou para que outros povos pudessem ter acesso, e mesmo outras gerações que iriam, no futuro, habitar o Egito.


Considerações finais


Por meio do uso da memória, o homem relembra fatos, armazena registros, retém lembranças de sua vida, de sua história, de seu passado, do passado de outras pessoas, outros povos, no geral, lembranças de momentos importantes, recordações de tradições familiares, religiosas, lugares e pessoas que conheceu, filmes que assistiu, músicas que ouviu, viagens, lembranças de sua infância, a escola, amigos, professores, suas experiências de vida sobre a faculdade, vida afetiva, Profissional, etc.


Contudo, além do que citamos acima, se faz fundamental observarmos a profunda importância de todos aqueles objetos, através dos quais conseguimos reter e perpetuar os acontecimentos que ficaram registrados em nossa mente, e na mente de todos os povos, desde a Antiguidade.

Compreendemos isso melhor como memória. Estas memórias, relatos, fatos, nos vêm sendo transmitidos também por meio de livros, estátuas, lápides, templos, pirâmides, obeliscos, sarcófagos, filmes, músicas, hinos e preces em geral. A memória da humanidade construída ao longo dos séculos, por via oral e da mesma forma, utilizando-se do uso da escrita, em documentos e monumentos, rochas e pedras. Lugares da memória, que acabam por tornar muitos momentos marcantes da História, eternos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


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BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e Mitos do Antigo Egito. EDIPUCRS: Porto Alegre, 2001.
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CARDOSO, Ciro Flamarion. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. Editora Ática, 1995.

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HEIN, Regina Lúcia Martins de Souza. “O Imaginário Religioso Egípcio acerca da Imortalidade nos Textos dos Sarcófagos” Tese de Mestrado(UFF), Niterói, 2001.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Trad: Beattriz Sidou. - São Paulo: Centauro, 2006, 224p.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Editora Unicamp, Campinas, 1989.

SARAIVA, Márcia Raquel de Brito. Obeliscos Egípcios: História e Transcritura. Porto Alegre, 2004. 75 p.(trabalho de conclusão de curso apresentado na faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS – Campus Porto Alegre, para obtenção do título de Bacharel em História). Orientadora: BAKOS, Margaret Marchiori. 

O Livro dos Mortos do Antigo Egito. Trad: Edith de Carvalho Negraes. Hemus Editora Ltda, 1982.

VILELA, Marcelo Miranda. “O julgamento Pós-Vida Presente no Livro dos Mortos do Antigo Egito: Religião, Moral e Sociedade.” Tese de Mestrado (UFF), Niterói, 2006.
 


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