"A importância da Perpetuação da Memória
Coletiva: O uso da Epigrafia nos monumentos e documentos egípcios, com o
intuito de eternizar acontecimentos memoráveis de sua História"
Amanda
Martins Hutflesz
POR AMANDA HUTFLESZ - PETRÓPOLIS - 2016
(...)
4. A Literatura Funerária no Egito
O estudo acerca da memória perpetuada pelos rituais
funerários da religião no Antigo Egito é algo bastante amplo, e poderá ser
sempre auxiliado pelas informações contidas no Livro dos Mortos, o qual data da
XVIII Dinastia, e sua relação com os processos da mumificação, com os deuses da
morte, seus cultos, oferendas e o papel dos sacerdotes no ritual. Onde tudo era
pensado com o propósito de permitir que o morto, encontrasse com segurança, um
caminho para a vida após a morte, sendo necessária a preservação do seu corpo,
eternizando sua alma, sua lembrança, para o momento no qual, a alma voltaria a habitá-lo.
A
literatura funerária talvez seja um dos mais fascinantes aspectos do qual
podemos tratar neste artigo. Este imaginário místico e exótico sobre vida após
a morte, vida eterna, uma maneira singular de tratar o morto através da prática
da embalsamação, as preces e fórmulas mágico-rituais empregadas pelos
sacerdotes visando auxiliar o morto em sua chegada no outro mundo, com direito
ao julgamento da alma dentro de um tribunal específico, os diversos deuses
cultuados por um povo que vivia em meio ao politeísmo.
De
acordo a tradutora da obra Edith Negraes (1982): “[...] uma conseqüência
natural do culto aos mortos, seria oferecer a eles, para sua vida eterna, tudo
de que necessitariam, já que onde viveriam – nas tumbas – não encontraria meios
de sobreviver”.
É
preciso focar tal cultura, tendo atenção naquilo que está nas entrelinhas de
suas práticas e rituais. Pois, este povo estava visando sempre, uma perpetuação
de sua alma e de seu corpo, o qual sendo conservado alcançava também, a
imortalidade. Uma permanência da sua lembrança, da sua memória e, de tudo o que
representou sua sociedade no passado, nos primórdios, ultrapassar o tempo, ser
imutável na lembrança do mundo contemporâneo.
A
tradição é biologicamente tão indispensável à espécie humana como o
condicionamento genético o é às sociedades de insetos: a sobrevivência étnica
funda-se na rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital necessário à
sobrevivência do grupo, o progresso, a intervenção das inovações individuais
para uma sobrevivência melhorada. A autora (Apud BAKOS, 2005: p. 271-281)
colabora com sua visão a respeito dos obeliscos e sua utilidade para este povo,
neste período histórico, buscando imortalizar sua história, escrevendo os
acontecimentos no monumento para manter viva sua importância mediante o futuro,
apesar da passagem do tempo.
Assim, apoiados nesta
leitura, pensamos que o obelisco transmite, na sua reutilização por uma grande
duração através da história, um sentido compreendido para aquilo que escreve
apenas. Ele encerra o caráter de preservação da memória de poder sobre a
existência de perpetuação. Pois, sabemos que a escrita hieroglífica desapareceu
após a invasão dos gregos, e também, a sua existência mítica (BAKOS, 2005).
Diversos
ritos eram realizados antes do sepultamento, dentre eles a cerimônia de
abertura da boca do morto, que era feito com um instrumento metálico. Enxó de UPUAUT “aquele que abre os caminhos”
(do morto). A abertura da boca servia para a múmia recuperar os sentidos e
digerir o alimento necessário na viagem para o além ou para a fonte original de
vida. Havia o tribunal de Osíris, e este tribunal do juízo final era presidido
pelo mesmo deus, e ocorria na sala das duas verdades, onde o deus Anúbis pesava
o coração do morto para constatar os pecados cometidos em vida. Assim, quando o
coração do morto era mais leve que a pluma da verdade (Maat), seu dono viveria
para sempre. Caso contrário, o coração era jogado para o monstro Amit “o devorador
dos mortos”. Osíris está acompanhado pelas irmãs, Ísis (esposa) e Néftis.
Nomes eternos, estátuas eternas, caixões eternos,
papiros, amuletos, roupas, monumentos, imagens, colossos, pirâmides. Os
egípcios estavam sempre “seguros de que a vida não acabava na terra”, e,
contudo isto, “No Egito Antigo, a alma era imortal e de natureza divina, pois
mesmo depois de separada do corpo continuava a vive, viajando para a
eternidade. [...] o morto precisava para sua viagem, de uma boa dose de
conhecimentos mágicos [...]” (NEGRAES, 1982).
Quando
mencionamos os povos antigos e sua beleza, riqueza cultural, desenvolvimento,
uma das principais grandes civilizações que nos vêm à memória, inevitavelmente
é o Antigo Egito. Suas variadas tradições e concepções sobre a construção de
uma memória eterna, seus escritos feitos para a posteridade, seus monumentos
erguidos com um intuito de perpetuar a lembrança de tudo o que foi esta
civilização. O caráter de imortal, de permanência, de renovação, de
grandiosidade, de durabilidade é constantemente percebido nos seus documentos e
nos seus monumentos.
A
partir deste recorte feito na obra de Le Goff, (1989) é mais fácil perceber o
objetivo da perpetuação da memória para os Antigos egípcios. Momentos de guerra
e de vitórias envolvendo a realeza da época precisavam ser imortalizados de
alguma forma, e servindo de lembrança para os povos da posterioridade. “A
especificidade do monumento [...], Tem, portanto, a finalidade de manter ou
preservar também a identidade mágica, religiosa, nacional, tribal ou familiar
de um grupo”. O autor ressalta que, “A outra forma de memória ligada à escrita
é o documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita […] Mas,
importa salientar que [...] todo documento tem em si, um caráter de monumento e
não existe memória coletiva bruta.
Explicando
melhor o Deus da escrita dos antigos egípcios, Thot, Le Goff (1989: p. 433) diz
que: “[...] a lenda do Deus egípcio Thot, patrono dos escribas e dos
funcionários letrados, inventor dos números, do cálculo, da geometria a da
astronomia, do jogo de dados e do alfabeto.”
Em
geral, para os reis do período faraônico, a estabilidade do reinado dependia de
certas tradições religiosas e militares caminharem juntas. Cultuando sempre
seus deuses, e vivendo através do ideário que dizia aos reis que, para que eles
tivessem sucesso na vida em geral, era sempre necessário manter um equilíbrio
da ordem cósmica, buscando agir na terra de forma ética para seu povo, usando
de justiça, equilíbrio, ordem e verdade, priorizando em seu cotidiano, obter
êxitos na parte social, política, cultural econômica, pessoal, religiosa.
Era
preciso assim, escrever tudo, registrar em documentos, calcular, gravar tudo em
rochas, papiros, livros, principalmente os seus nomes. Sua crença na eternidade
dos nomes de poder era ampla.
Neste tipo de
documento, a escrita tem duas funções principais: “Uma é o armazenamento de
informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao
homem um processo de marcação, memorização e registro; a outra, ao assegurar a
passagem da esfera auditiva à visual, e permite reexaminar, reordenar,
retificar frases e até palavras isoladas.” (GOODY, 1977)
O
autor J. Goody (Apud GOODY, 1977: p. 78), escreve em seu livro que: “A comunicação
da informação, que ultrapassa espaço e tempo, o que em conformidade foi sempre
utilizado no imaginário cultural dos antigos egípcios.”
Nomes
estes, ficando esculpidos em pedras, deixando transparecer, através das imagens
desenhadas nos monumentos, o quanto eram nobres, bons, justos, fortes,
imortais.
Uma
lembrança sempre durável, de algum fato que foi marcante para a realeza, e
também para a civilização, e que estava relacionado ao poder do homem/rei/faraó
para se eternizar mediante à futuras gerações. Mostrando nas imagens das
guerras, das batalhas, das comemorações, dos ritos funerários, das colheitas,
das festas, como era possível se viver para sempre. Ser eterno, imortal,
perpétuo, ultrapassando tempo e espaço, era, para a maioria deste povo, algo
fundamental.
E,
eles conseguiram nos deixar claramente esta memória, pois preservaram suas
vidas até hoje, seus nomes, seus hábitos, seu modus vivendi, em
monumentos e documentos. Em seu artigo, Regina Martins de Souza (HEINS, 2001:
p. 1-2) nos explica que:
[...] no período que chamamos reino
médio – 2040 a 1640 a.C., a literatura funerária principiou a ser uma idéia
socialmente difundida, pois manifestava a visão de mundo egípcia na época, e
que também, acabavam por dar sustentação às crenças nos encantamentos e na
existência real e concreta de uma vida após a morte.
Em
uma posterior análise deste recorte extraído da obra deste autor (Apud DAUMAS,
1965: p. 579), compreendemos, da mesma forma que:
Mais tarde os
soberanos fazem redigir pelos seus escribas relatos mais detalhados dos seus
reinados dos quais emergem vitórias militares, benefícios da sua justiça e
progressos do direito, os três domínios dignos de fornecer exemplos memoráveis
aos homens do futuro. No Egito, parece, desde a invenção da escrita (um pouco
antes do início do III milênio) até o fim da realeza indígena na época romana,
anais reais foram redigidos continuamente. Mas o exemplar único, conservado em
frágil papiro desapareceu. Só nos restam alguns extratos gravados na pedra.
No
Livro dos Mortos do Antigo Egito, percebemos melhor as crenças religiosas dos
Antigos Egípcios. Eles nos mostram que, para eles, o corpo era uma manifestação
da alma, e ambas deveriam sempre estar ligadas, mesmo no outro mundo. Sendo
assim, muitas eram as técnicas de embalsamação acompanhadas das práticas
religiosas, as quais desenvolvidas para obter êxito no momento do ritual
funerário, indicando para a alma do morto, o caminho mais rápido para sua
transfiguração no além. Inclusive, tais técnicas foram também sendo cada vez
mais refinadas com o passar dos séculos, conforme a exigência dos faraós e
sacerdotes.
Os
textos dos sarcófagos são exemplos nítidos de uma memória que chegou até a
atualidade. Todos os escritos neles contidos visam difundir alguma idéia acerca
da passagem do morto para a outra vida. Representam fórmulas mágicas que, junto
com todo o ritual funerário, possibilitava ao defunto, sobreviver no mundo
subterrâneo, para posteriormente, encontrar o caminho da luz.
Entendo o próprio Livro dos Mortos como uma construção da
memória funerária desta civilização, feita para a eternidade. E o Livro, foi um
lugar onde esta memória se perpetuou para que outros povos pudessem ter acesso,
e mesmo outras gerações que iriam, no futuro, habitar o Egito.
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